Por não estarem distraídosHavia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Clarice Lispector
domingo, 26 de julho de 2009
quarta-feira, 22 de julho de 2009
domingo, 19 de julho de 2009
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta:
outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente:
outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem:
outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte
- que é uma questão de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta:
outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente:
outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem:
outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte
- que é uma questão de vida ou morte -
será arte?
Ferreira Gullar
DIAMANTE
(Antônio Cícero)
O amor seria fogo ou ar em movimento, chama ao vento;
e no entanto é tão duro amar este amor que o seu elemento deve ser terra:
diamante, já que dura e fura e tortura e fica tanto mais brilhante
quanto mais se atrita, e fulgura,
ao que parece, para sempre:
e às vezes volta a ser carvão
a rutilar incandescente
onde é mais funda a escuridão;
e volta indecente esplendor
e loucura e tesão e dor.
O amor seria fogo ou ar em movimento, chama ao vento;
e no entanto é tão duro amar este amor que o seu elemento deve ser terra:
diamante, já que dura e fura e tortura e fica tanto mais brilhante
quanto mais se atrita, e fulgura,
ao que parece, para sempre:
e às vezes volta a ser carvão
a rutilar incandescente
onde é mais funda a escuridão;
e volta indecente esplendor
e loucura e tesão e dor.
agora sei
Eu a vi enfim e de repente
Ela que tanto escondeu o rosto
E me arranhava em seus espinhos
Sem saber aonde estava
Tateando no escuro
Das esquinas de meu peito
Eu a vi
Era domingo de manhã
Cansada estava e me olhou
Entregue dessa vez
Chorava o desconsolo
E já não tinha raiva ou medo
Eu também chorei
Porque eu desejei tanto consolar
E não sabia como
Agora sei
Minha tristeza
Flor dos meus olhos
Vai enfim dormir e sonhar
Minha tristeza
Metamorfoseou
Tão delicadamente
Ganhou asas e voou
Ela que tanto escondeu o rosto
E me arranhava em seus espinhos
Sem saber aonde estava
Tateando no escuro
Das esquinas de meu peito
Eu a vi
Era domingo de manhã
Cansada estava e me olhou
Entregue dessa vez
Chorava o desconsolo
E já não tinha raiva ou medo
Eu também chorei
Porque eu desejei tanto consolar
E não sabia como
Agora sei
Minha tristeza
Flor dos meus olhos
Vai enfim dormir e sonhar
Minha tristeza
Metamorfoseou
Tão delicadamente
Ganhou asas e voou
Flor de beijos
Ah, flor de beijos
Flor de beijos
Quando o sol surge no céu
Ela inicia seus pedidos:
Beija-flor!
Beija-flor!
Ah, tão macia
Tão macia
Dá-se ao vento por inteira
Nada teme à luz do dia
E em seu orgasmo
Vira pólen
Flor de beijos
Quando o sol surge no céu
Ela inicia seus pedidos:
Beija-flor!
Beija-flor!
Ah, tão macia
Tão macia
Dá-se ao vento por inteira
Nada teme à luz do dia
E em seu orgasmo
Vira pólen
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