segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Bilhete - Capítulo Sete

Sete






- Psit!
Nicoleta estava distraída fechando o livro e fazendo suas últimas observações.
- Psit! Senhorita!
Tinha alguém chamando por ela. Olhou em volta e só viu dois olhos escondidos atrás da coluna de cimento da sala.
- Está falando comigo?
- Sou eu Srta, Roberto!
- Roberto? Por que está escondido aí dessa maneira?
- Ué. A senhorita me disse para ser discreto.
- Mas não tem ninguém aqui. Não precisava exagerar.
- Bem, senhorita, como quiser. – E saiu do seu esconderijo. – Já está encerrando o expediente? Vim para buscá-la.
- Ah, sim. Só mais um minuto e termino.
- Certo. – Roberto deu uma boa olhada em volta. – Como está suportando isso aqui, senhorita?
- É trabalho, Roberto. Trabalho é trabalho.
- Eu sei, mas...
- Nem mais, nem menos. Se alguém está querendo me assustar com tudo isso vai ver que não conseguiu. Além do mais está sendo muito bom começar aqui de baixo porque eu estou vendo coisas que me deixam abismada.
- Mesmo? O que por exemplo?
- Meu Deus, tantas coisas. Absurdos de todo o tipo.
- Mas o seu tio é uma pessoa tão boa... como pode?
- Também não sei... alguma coisa está muito errada aqui, Roberto. E eu vou descobrir.
- Cuidado, Senhorita Nicoleta, cuidado, por favor... – Roberto ficava todo arrepiado só de pensar no que aquela jovenzinha poderia estar se metendo.
- Não se preocupe, Roberto. Eu sei me cuidar.
- É disso que eu tenho medo...
- Bem, estou pronta. Vamos?
- Sim, vamos. Direto para Botafogo.
- Ah meu Deus. Ainda tem essa. Já havia até me esquecido.
- Temos que ir, Senhorita.
- Bem, está bem. Mas eu fico no carro e você entra.
- Está bem, senhorita. Como achar melhor.

E foram. Nicoleta estava nervosa e irritada porque estava nervosa. Por que tinha que ficar assim por um homem que mal conhecia e que ainda por cima a achava uma criança idiota e mentirosa? Mas ele não ia mais botar os olhos nela. Não se dependesse da sua vontade. Um rapaz rico e bonito como ele... não era mesmo para o seu bico, Nicoleta. Sua pretensiosa.
- É isso mesmo. – Nicoleta estava falando sozinha de novo.
- Que disse, senhorita?
- Ah, nada. Nada mesmo. Eu estava só...
- Pensando alto...
- Como sabe?
- A senhorita sempre pensa alto.
- Ah, sim?

Roberto olhou pelo retrovisor e riu. Mas reparou também que a senhorita estava torcendo as mãos daquele jeito só dela. Estava nervosa. Por que será, ahn? Claro! Por causa do Sr. Fonseca Campos! Então... será que... bem, isso não é da sua conta, Roberto. Fique na sua que você é só um motorista e mais nada. A senhorita lhe trata bem, conversa com você, mas não esqueça o seu lugar.

- O que disse, Roberto?
- Eu? Ah, nada.

Roberto ficou sem graça e procurou mudar de assunto. O carro rodou pela cidade por bastante tempo.

- Chegamos.
- Já? Dessa vez passou rápido.
- É que já está se acostumando com as distâncias.
- Ah... pode ser... – E torcia os dedos.
- Bem, e agora? O que faço? Entro sozinho ou não?
- Bem... bom... já que estou aqui, vou entrar. Não fica bem eu ficar no carro, não é?
- Claro, senhorita. Então vou anunciá-la.

Roberto desceu e deixou Nicoleta esperando. Logo voltou e abriu a porta do carro para que descesse. Entraram por uma bonita varanda e entraram em uma esplêndida sala. Nicoleta olhava aquilo tudo maravilhada. Aquela sala conseguia ser ainda mais bonita que a da mansão do seu tio. Era tão cheia de coisas lindas, quadros, objetos de arte, tapetes, móveis... Nicoleta não conseguia fechar a boca.

- Boa noite, senhorita...

Mas ela não estava ouvindo extasiada com toda aquela beleza.

- Senhorita?
- Ahn? Ah!
- Boa noite, senhorita Nicoleta – Era ele. Otávio.

- Desculpe, estava distraída. É que tudo é tão bonito...
- Quer conhecer a casa?
- Ah, não, me desculpe, é que tenho que ir logo, senão todos vão ficar preocupados.
- Está bem. Um outro dia então.
- Sim, quem sabe?
- A senhorita disse que tinha um recado para mim?
- Ah! Claro! A senhora estava ainda mais aflita. Me disse que lhe falasse para não fazer o que pretende no dia 22. Que era caso de vida ou morte...
- Meu Deus... que mistério é esse? Senhorita, se importa de me descrever a senhora novamente?
- Não. Ela é alta, pele alva, muito bonita, cabelos negros muito bem presos. Olhos claros e tristes. Usava um vestido branco e um grande chapéu.
- Se parecia com essa mulher? – E Otávio lhe mostrou uma fotografia que tirou da carteira.
- Sim! É ela mesma!
- Senhorita, por favor...
- O que? O que foi?
- Está brincando comigo. Só pode ser...
- Eu? Me acha mesmo com cara de brincalhona, Senhor? Pois isso já é demais. Demais mesmo. Roberto já deixou o documento? Então vou embora agora, já.

Otávio ficou olhando Nicoleta sair entre aborrecido e triste. Aquela senhorita só podia estar mesmo querendo alguma coisa com aquela brincadeira de mau gosto. Passou pela sua cabeça que ela era jovem demais, talvez estivesse querendo chamar sua atenção e por isso inventara uma história mirabolante como aquela.
Nicoleta saiu com o rosto vermelho em chamas. Estava irada de verdade e com vergonha. Foi saindo sem olhar por onde e logo descobriu que estava perdida e não sabia por qual porta ir para o jardim. Isso mais a irritou.

- Precisa de ajuda? – Otávio surgiu outra vez na sua frente.
- Onde é a saída? – Nicoleta estava quase gritando.
- Escute, senhorita... não quis ofendê-la, mas...
- Esqueça. Não me ofendeu. Saiba que de hoje em diante não ouvirá nem uma palavra minha sobre esse assunto.
- É melhor assim.
- Bem que a senhora me falou que não acreditaria nela. Pelo jeito não acreditaria nem no fantasma da sua mãe se ele aparecesse na sua frente! E saiu, soltando faíscas pelo caminho que Otávio lhe indicou. Nem viu que o rapaz ficou parado sem saber o que responder. Nenhuma mulher lhe falara assim antes.
- Vamos embora, Roberto! E espero não botar mais meus pés nessa casa. Nunca mais!
- O que houve, senhorita?
- Não importa. Esqueça. E não me fale nem mais uma palavra sobre esse senhor Fonseca Campos.
- Está bem... se a senhorita quer assim...
- É, quero mesmo. Isso mesmo. – E ficou calada, mas seu rosto não disfarçava sua indignação.
- Mal-educado! – pensou alto.
- O que disse, senhorita?
- Nada! Não disse nada!

Roberto achou melhor ficar quieto porque hoje a senhorita estava uma fera. Alguma coisa de muito grave acontecera. Achou melhor não abrir mais a boca até chegar em casa.

- Boa noite senhorrita... A senhora quer falar-lhe agorra. – Assim que Frau Eva viu Nicoleta entrar, foi logo em sua direção.
- Vou tomar um banho, me trocar e volto logo.
- Não demorre, a senhorra não gosta de esperrar.
- Já percebi.
- Ela estarrá no escritórrio. – E saiu antes que Nicoleta pudesse abrir a boca para dizer qualquer coisa.
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O Bilhete - Capítulo Oito

Oito




Uma batida na porta do escritório e uma voz requintada e séria responde:

- Entre.
- Frau Eva me disse que deseja falar comigo.
- Sim. Sente-se.
- Obrigada.
- Como foi seu dia de trabalho?
- Bom... – Nicoleta desconfiava daquela súbita preocupação.
- Alguma novidade?
- Coisas normais...
- Sei... e já fez algumas amizades na fábrica?
- Não, infelizmente não. Todos são muito sérios.
- Como convém a um local de trabalho.
- Claro. Mas todos parecem muito sofridos...
- Nem todos gostam de trabalhar duro.
- Minha tia acha que é o caso dos trabalhadores da fábrica?
- Não costumo tratar disso. Tenho muitas coisas a resolver aqui na mansão. Não interfiro nos assuntos da fábrica, como sabe.
- Ah, claro.
- Mas, chamei você aqui para saber se está tudo bem e para dizer que desejo que viva bem em nossa casa.

Surpresa! Por essa Nicoleta não esperava... contudo, aquele olhar por trás das palavras... parecia não ter o mesmo sentimento do que era dito. Mas Nicoleta tinha um quê de menina. Precisava muito alimentar-se de esperanças que a vida naquela casa pudesse ser melhor. Por isso, embora fosse bem esperta, achou que, talvez, quem sabe, não poderia dar uma chance a sua tia? Quem sabe ela não fosse somente uma pessoa fechada e acostumada a um outro padrão de vida? Talvez fosse verdade que estivesse tentando se aproximar dela...

- Agradeço por sua atenção, titia. E desejo a mesma coisa...
- Muito bem. Então que assim seja. – Nicoleta percebeu para sua tristeza, que sua tinha estava dando a conversa por encerrada.
- O trabalho é muito duro... realmente estou muito cansada e...
- Então recolha-se e vá descansar.
- Ah, claro... – Nicoleta sentiu que não conseguiria conversar mais um pouco.

Que pena não, Nicoleta? Está se sentindo só, ahn? Mas você não queria vir para o Rio de Janeiro? Não fez tudo para vir? Agora enfrente as situações menina, enfrente e não choramingue.
Ela pensava nisso tudo enquanto levantava-se e saía em direção a porta do escritório.

- O que disse? – Sua tia perguntou.
- Ahn? Ah, não é nada. Estava só pensando alto. É que ... às vezes me sinto um pouco... só...

Aquelas palavras de Nicoleta deram uma grande idéia à sua tia. Uma grande idéia.

- Sinto muito, menina... mas quem sabe isso logo não se resolverá?
- Como? Não conheço quase ninguém e mesmo minhas primas...
- Está bem. Agora vá. Nós daremos um jeito nisso.
- Claro... desculpe. Boa noite, Tia Flora.

Nicoleta saiu do escritório. Guardava um fio de esperança que aquele fosse um começo de aproximação com seus parentes da cidade. Ela queria muito viver bem, ser feliz. Sorriu e subiu as escadas mais feliz. Iria escrever aos seus pais e contaria esta conversa com sua tia. Eles ficariam contentes. Sim, ficariam.
Logo que Nicoleta saiu, a sineta tocou no escritório. Frau Eva, como sempre, apareceu imediatamente.

- Sim, senhora?
- Chame minhas filhas.
- Claro, senhora.

E saiu. Poucos minutos depois voltou com Cecília e Isadora. Lindas, perfumadas, enfeitadas, com convém a jovens de sua estirpe. Isso é opinião delas, não minha.

- Chamou, mamãe?
- Sim, chamei. Precisamos conversar sobre algo muito sério e importante.
- Sim? – Falou Isadora.
- Pois diga, mamãe. Cecília era espevitada e curiosíssima.
- Primeiro, diga-me, Isadora, como vai indo sua amizade com Otávio Fonseca Campos?
- Amizade? Ah, mamãe, sabe muito bem o que sinto por Otávio... – E enrubesceu. Isadora, apesar de tão mimada quanto a irmã, era um pouco mais recatada. Talvez por ser mais velha que Cecília.
- Pois bem, e quanto a ele?
- É muito gentil comigo...
- Gentil ele é com todos, Isadora. Não é isso que estou perguntando.

Isadora ficou vermelha. Não estava acostumada a falar sobre isso com a mãe.

- Não sei o que quer saber, mamãe.
- Quero saber se sente algum interesse especial por você.
- Acho que sim. Bem... gostaria muito, na verdade...
- Eles ficaram conversando o tempo todo na festa de Marta Campos.
- Cecília!
- Conversando? Sobre o que Isadora?

Isadora lançou um olhar fulminante para Cecília, que sempre falava demais.

- Conversamos sobre várias coisas. Sua última viagem à Europa, sobre meus estudos de casa...
- Muito bem... muito bem...
- Mas, o que tem isso com nossa conversa de agora? – Cecília não se agüentava de curiosidade.
- Bem, meninas. Sabem que esta nossa conversa deve ficar em segredo. Compreendem?
- Claro. – Responderam as duas filhas.
- Diz respeito à sua aproximação com Otávio, Isadora. E também diz respeito à Nicoleta.
- Nicoleta? O que Nicoleta tem a ver com isso, mamãe? – Isadora logo se exaltou. Não gostava da prima, da sua beleza e da sua decisão.
- Recebi um telefonema da fábrica...
- De quem?
- Não interessa Cecília! Deixe-me falar.
- Desculpe...
- Fui informada então que Nicoleta esteva conversando com Otávio na fábrica.
- O que!!?? – Isadora ficou logo rubra de ciúme. – Mas o que Otávio poderia querer conversar com essa desmilinguida e caipira?
- Caipira, mas muito bonita...
- Cale-se Cecília! – Isadora deu um tapa nos braços de Cecília.
- Parem! Parecem duas criançinhas. Isadora, é assim que deseja conquistar um jovem requintado e sério como Otávio Fonseca Campos? Comportem-se como duas damas.
- Desculpe, mamãe.
- Escutem o que vou dizer. Está claro que esta conversa de Nicoleta com Otávio deve ter sido um incidente sem maior importância. De qualquer maneira precisamos estar atentas. Além disso, desejo que Nicoleta volte para sua família logo. Não acho que ela deva ficar entre nós... compreendem?
- Claro! Mas o que vamos fazer? – Cecília estava excitada. Adorava esse tipo de tramas. Era prepotente e má, apesar de ter a mesma idade de Nicoleta. Tratava os empregados com insolência e descaso e era capaz de incríveis intrigas para ter o que quer. E vocês não sabem, Cecília guardava em segredo uma queda por Otávio. Já havia decidido que ele seria seu e não de sua irmã. E agora sua mãe dizia que Nicoleta conversara com Otávio. Ah... essa sua prima não perderia por esperar. Faria o que sua mãe estivesse pensando e algo mais.
- Primeiro, precisamos nos aproximar de Nicoleta... fazê-la confiar em nós. Apesar de muito esperta, essa jovem é inocente.
- Inocente, sei... pois já está se insinuando para Otávio!
- Não sabemos os motivos da conversa, mas devemos ficar atentas. Escutem minha idéia...

As três ficaram um bom tempo no escritório confabulando. Que coisa terrível estavam tramando contra nossa Nicoleta? Ah, menina... você não conhece nada da capacidade humana de ferir os outros. Deve se precaver, Nicoleta... deve sim...

Mas o fato é que nos dias que se seguiram, o comportamento das mulheres na mansão mudou completamente em relação a Nicoleta. Nunca mais esqueceram de chamá-la para as refeições, passaram à convidá-la para saraus noturnos e outras pequenas coisas que confirmaram para Nicoleta sua esperança de que tudo se ajeitaria. A jovem italianazinha estava contente com isso. Escrevia aos seus pais entusiasmada, contava das primas, como eram lindas, da mansão... seu entusiasmo só diminuía quando falava da fábrica, porque a cada dia presenciava mais injustiças inacreditáveis. Seus pais respondiam que não se intrometesse naqueles assuntos que não lhe diziam respeito, que não abusasse da confiança de seus tios, e etc. Coisas que pais sempre dizem aos filhos. Na verdade, conheciam bem a filha que tinham e temiam que se metesse em confusões.
Uma noite, alguns dias depois, durante o jantar...

- Nicoleta, já lhe falamos sobre o Baile da Cidade?
- Não, Isadora.
- Pois é o baile mais esperado, um acontecimento!
- Nossa... nunca fui a um baile.
- Não? Mas como pode isso?
- Isadora, não seja inconveniente, Nicoleta é do interior, você sabe isso.
- Ah, desculpe Nicoleta – falou com falsidade bem disfarçada – é que sempre me esqueço desse fato. Você já é tão de casa.
- Obrigada, prima. Fico feliz que pense assim.
- Bem... mas você vai ao Baile conosco.
- Vou?
- Claro que sim. Vamos escolher um vestido bem bonito para você.
- Ah, isso não vai ser possível. Eu só tenho vestidinhos de ir à Quermesse.
- Não se preocupe, nós providenciaremos um vestido que vai ficar lindo em você. E tudo o mais que precisar, sapatos, bolsa, maquiagem, jóias.
- Não estou acostumada a isso, vocês sabem.
- Mas um dia na vida você pode experimentar, não é?
- Bem, se acham que devo ir...
- Claro que sim! – Falou Cecília com entusiasmo. Mas infelizmente não era por amizade que afirmava isso. Estavam aprontando alguma, ah, se estavam... Nicoleta... Nicoleta... não confie nessas meninas... fique atenta...
- Agradeço, primas. – Nicoleta estava até um pouco emocionada e com isso perdia um pouco de sua atenção para os sinais discretos de falsidade daquele diálogo. Pobre Nicoleta...



No jantar, a conversa estava amena e até prazeirosa.
- Nicoleta, me diga, como estão as coisas na fábrica?
- Estão bem, titio.
- Me disse que desejaria passar por vários lugares para decidir onde ficar. Acho que já está mais do que na hora de ir para outra seção.
- Mas...
- Não quero que discuta minha decisão. Amanhã vou encaminhá-la para a tecelagem.
- Querido, você está falando de trabalho à mesa, sabe que não aprovo isso.
- Mas já encerrei o assunto!
- Bem, titio, se acha que devo fazer isso... tenho apenas algumas semanas nas Caldeiras e já vi bastante coisa por lá.
- Sim? O que por exemplo?
- Estão todas anotadas no livro diário. Mas o senhor não lê o livro, é claro.
- Nicoleta, seu tio não vai fazer esse tipo de serviço. Ele é o dono da fábrica, tem outras preocupações mais importantes.
- Claro, tia. Eu entendo isso, claramente. Mas é que meu tio é um homem muito consciente de tudo, por isso achei que já tinha algum dia lido o livro das caldeiras.
- Claro que sou um homem consciente! E claro que já li o livro das Caldeiras muitas vezes.

Seu tio pigarreou. Estava claro que nunca havia pensado em ler os livros das caldeiras. Mas registrou no seu íntimo que Nicoleta estava certa, como podia não saber o que se passa naquele setor?
- Viu só, titia? Eu sabia que meu tio não poderia ficar afastado totalmente das sessões de base da fábrica. Ainda mais as caldeiras que funciona em condições tão complexas... se der algum problema ali... isso seria muito ruim para a imagem da família.
- O que de ruim poderia acontecer? – Seu tio agora estava preocupado.
- Vamos mudar de assunto, por favor? Estamos no meio de nosso jantar...
- Diga, Nicoleta, o que poderia acontecer de tão ruim?
- Ah, meu tio... algum empregado ter um acidente de trabalho e ser mandado embora sem sequer receber atendimento médico...
- Mas, o quê? Isso nunca aconteceria em minha fábrica.
- Mas acho que vai acontecer pela primeira vez...
- Nicoleta, pare por favor. Não vê que está trazendo preocupações para o seu tio no seu horário de descanso?
- Me desculpe, titia. A senhora tem toda a razão...
- Deixe-a terminar, Flora. Não vê que sou eu é quem está fazendo as perguntas? Continue Nicoleta.
- Bem, titio... è que há vários dias atrás um jovem se machucou ao cair com uma bobina muito pesada. Ele está afastado do trabalho e parece que vai ser demitido.
- Não... isso não pode acontecer. Amanhã mesmo vou ver isso.
- Está tudo anotado no livro desse mês.
- Ótimo. Vou isso de perto.
- Bem, tio, mas não deve cansar-se tanto na sua hora de repouso...

Essa Nicoleta, que danada! Não é que encontrou uma forma de falar sobre o incidente das Caldeiras?

- Sim, Nicoleta, sim... mas quero aproveitar que está fazendo seu aprendizado nas sessões de base da fábrica e desejo que seja meus olhos por lá. Quero que me dê relatórios particulares daqui pra frente.
- Mas, tio... ninguém sabe lá na fábrica que sou sua sobrinha, achei melhor assim.
- Por que?
- Não quero que me vejam como sua sobrinha e sim que me respeitem pelo meu trabalho.

Os olhos do tio brilharam de satisfação e isso não passou despercebido por ninguém ali naquela mesa de jantar. Flora mordeu discretamente os lábios e pensou que devia acelerar o processo de mandar Nicoleta de volta para a sua casa.

- Muito bem, minha filha. Muito bem.
- Podemos mudar de assunto agora? – Falou Flora com impaciência.
- Sim, Flora, mas devo dizer a Nicoleta que respeitarei sua discrição e que isso, na verdade, só vai ser positivo para que seus relatórios sejam mais produtivos. Quero relatórios semanais em minha mesa.
- Como desejar, meu tio.
- Bem, papai... podemos parar de falar dessas coisas maçantes de trabalho e tratar do que mais interessa?

Sr. Ameida e Moura mal disfarçou a decepção por ouvir sua filha Cecília falar daquela forma.

- Essas coisas maçantes sustentam seu luxo.
- Está bem, papai... mas quero falar do baile da cidade.
- Fale...
- Precisamos comprar nossos vestidos para ficarmos lindas.
- Sua mãe providenciará isso para vocês três.
- Nós três?
- Você, Isadora e Nicoleta.
- Ah... é claro... claro que sim...
- Bem, agora... vamos ao cafezinho. Preciso descansar que o dia foi muito longo.
- Sim... – disse tia Flora com o cenho carregado. Tocou a sineta e Frau Eva apareceu prontamente.
- Cafezinho, Frau Eva. Na sala ao lado.
- Sim, senhorra. Imediatamente.

Todos levantaram e Nicoleta nem o tio viram os olhares que tia e primas trocaram.
Nicoleta estava em perigo...







SE VOCÊ PERDEU OS CAPÍTULOS ANTERIORES E QUER CONHECER O INÍCIO DA HISTÓRIA ESCREVA

Sua mágoa

"Sua mágoa é ter dado o seu melhor, dessa vez sim, e mais uma vez, não, a vida diz: não é assim!
Sua mágoa é se dedicar, de corpo e alma e ainda faltar mais para dar, mais para dar, mais para dar...
Um poço sem fundo de coisas a fazer, além daquelas que você já entrega demais?
Sua mágoa é não ser entendido quando fala em símbolos, em silêncios, em atos, quando diz sem palavras, mas em presenças?
Sua mágoa é estar sangrando e ir caminhando, se dando, se dando, sem nunca ser reconhecido?
E ter aberto mão de ter vivido as propostas loucas, as loucas aventuras, as paixões ensandecidas, para dar-se com respeito que não é nunca visto?
Sua mágoa é não entenderem seus limites, os seus medos, seus pavores, seus muitos pontos de interrogação?
É de ser encurralado, como um bicho acuado e perguntarem sem parar: por que? por que? Se você mesmo não sabe responder?
Sua mágoa é de não ter parado o tempo que queria para viver só pra si e estar sempre cuidando, amando, velando e sempre incompreendido?

Sua maior mágoa é não saber por que está tão magoado?

Então se chegou até aqui, descobriu o que não havia procurado."

quinta-feira, 4 de junho de 2009

ECOSENTIDO
(Mari Mari)

Falar sobre a terra
Texturas,
Perfumes
História...

Pisar a terra
Sentir sua existência
Compreendê-la na pele
Elemento a elemento
Ouvir os lamentos
Desabafar os seus


Falar de água
Potenciais e belezas
Citar rios e mares
Cachoeiras, temporais...

Banhar-se no córrego
Em dia de sol à pino
Vestir de água seu corpo
Ser fluido e fluir
Evaporar para o céu
E cair
Em gotas sobre a pele-terra

A terra que chama a água
A terra que pede chuva
A terra que pariu vida
Inseparável da sua

Teorizar sobre verdes
De plantas, matas e árvores
De flores
E de frutos...

Ficar ao vento
Enverdecer aos poucos
Trajetória de semente
Na terra
A terra que é pulsante
Dentro da pele
E que tem sede
E clama por água
Porque sente e precisa
Porque vive a razão


Falar do sol, astro rei
Capitão dos céus
Relatos de importâncias
E de suas distâncias...

Brilhar o sol nos olhos
Fazer do coração dourado corpo
Rei das sabedorias
Senhor das coisas sem palavras
Cor da palavra falada e escrita
O calor correndo em veias
Nos pelos eriçados de atenção
Ouvidos em silêncio atinando
Para o chamado das sementes
Recém formadas
No centro da vida

Há uma grande diferença
Morena, dourada, verde e líquida
Entre fazer teoria da coisa
E sabê-la inteiramente
Ecosentida