1 1 " Risco de Cair!
O livro mais importante que li foi um infantil. O Equilibrista. Isso deve dizer muito sobre mim. Diz que eu entendo bem o que é o risco de cair. Quero falar disso.
Na verdade eu quero falar.
Quero falar, falar, falar. E também quero dizer que esse título me ocorreu, como quase tudo, de repente e do nada.
Para quem não entende do assunto e já nasceu seguro de si, essa é a marca principal dos que vivem em risco de cair. Quando acontece algo é por acaso. Veja só, um nome bacana deste que tornaria rica uma pessoa predestinada (tomara que não tenha tornado ainda, porque aí ainda por cima seria plágio), em nós é algo de um prazer fugaz. A delícia de se sentir dono de uma genialidade instantânea que vai tirar você da lama para sempre. Esse prazer, esse deleite é típico dos que habitam essa região das estatísticas e que podem despencar flagorosamente a qualquer segundo.
Por isso vou começar tudo com a imagem que uma taróloga gratuita da internet me passou: uma montanha. Um platô na montanha e o abismo ali embaixo, a dez passos. Uma paisagem linda logo depois dele. Montanhas silenciosas, o eco como linguagem, Aquela visão espraiada da grandiosidade do que poderia ser se você não tivesse que cair de lá de cima para chegar.
Lembrei de Chico Buarque e Ney Matogrosso num clipe: “Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato de um querubim, que me falou que eu estava predestinado, a ser todo ruim...” Aquele clipe é fantástico... mais fantástico ainda é ser cantado por duas bocas famosas, bem sucedidas, e que nem precisariam cantar essa música. Tudo bem. Os que vivem em risco de cair às vezes resvalam nessa mágoa invejosa... eu, pelo menos, tenho bom humor e um pouco de compostura para sempre acrescentar depois dessas observações, que isso, na verdade foi resultado de uma luta deles e que passaram por ditaduras, foram para Londres e fizeram outras músicas mais famosas ainda lá, porque simplesmente são geniais e conseguem transformar uma música censurada em motivo de orgulho nacional. E são, de verdade. Eu amo o Chico Buarque. A primeira coisa que fiz quando consegui (bem recentemente) ter uma internet que preste foi ouvir, ler e ver tudo o que eu podia do Chico Buarque. Para vocês verem que não é implicância gratuita ou mera inveja, meu blog tem uma página de fundo, que é uma foto de uma página do livro do Chico, Leite Derramado.
A questão não é essa, de inveja. Isso é só um resvalo ocasional. A questão é que quando eu nasci o anjo safado estava ajudando ao Chico Buarque.
Mas hoje acordei com esse nome de livro e corri para o computador. Deveria fazer uma pesquisa antes para saber se já tem algum de alguém que ganha dinheiro com a idéia maravilhosa que acabei de ter, mas não sei porque não quero pesquisar nada.
Antes de tudo tenho essa vontade incontrolável de desabafar. Quero escrever, como estou agora escrevendo, sem corrigir nada, como um vômito e um frêmito avassalador no estômago. Porque realmente é uma idéia muito legal. A classe dos que vivem em risco de cair por mil motivos é imensa. Muito grande mesmo. E, ao contrário do que talvez pensem, são pessoas que fizeram muitas coisas. Só não conseguiram pagar suas contas e viajar para a Europa com o dinheiro que entrou desse muito que fizeram.
Mas não quero simplificar a questão. Não é só sobre dinheiro que estou falando. O problema é que o risco de resvalar por um despenhadeiro também tem a ver com ser pra baixo. Ter uma auto estima de minhoca. Nem posso usar minhocas para criar uma idéia que traduza o que quero dizer. Quem corre o risco entende. Estar rastejando, mesmo que com classe, mesmo com unhas pintadas, cabelos feitos e sorriso no rosto para disfarçar. Ter livros, idéias, planos de negócios, projetos bacanas demais, tudo guardado num arquivo não digitalizado na memória. Um registro caótico do que poderia ter sido. Um grande risco dividindo o caminho entre o sentir que vivemos e o andar por aí resistindo.
Engraçado que a tal taróloga que falei me disse que eu corria o risco de ganhar milhões, mas que sem ela talvez eu pudesse não enxergar a porta de entrada para o paraíso. Bem, o legado dessa intervenção providencial na minha vida é que minha cunhada jogou na loteria, usando os números que a Dona... (não vou revelar o nome, é claro) me disse que poderiam me levar aos milhões. Vinte milhões para ser mais precisa. Que coisa.
O resultado da loteria saiu ontem. Ainda não liguei pra saber se já sou milionária nesse momento. Já pensou? Se estou aqui falando de risco e tal e nem precisaria mais? De qualquer maneira vou curtir esses meus últimos minutos no muro de lamentações.
Mas não. Não pensem que eu quero escrever um livro chororoso e tal. Eu quero mostrar a vocês a graça disso. Até porque acho, e meu irmão já me disse, que sou chorosa demais, que meus poemas são chorosos e tudo o mais. Descobri (ele me fez o favor de dizer) que eu era chorona quando menina. Minha única foto com, sei lá, três anos, era de chorona sim. Fiquei com essa imagem. Chorona.... chorona... e, para dizer a verdade, estou agora mesmo com uma vontade imensa de chorar dessa lembrança. Por que os irmãos mais velhos têm que dizer isso para os menores? Essas lembranças idiotas de como éramos patéticos. Tenho olheiras até hoje de tanto que chorei. O pior de tudo é que algumas lembranças que me fizeram o favor de ficar escondidas até bem pouco tempo, de repente, como se tivessem sido convidadas, vieram à tona, num curso profissional que eu fazia. Veja só. Eu estava me encontrando enfim numa nova profissão e aí emergiu uma recordação daquelas de matar. O resultado foram vários meses de terapia pra digerir um tanto daquilo.
É um negócio de louco.
A tal lembrança sacana, ficou se esgueirando, maldosa, e esperando um momento bem certeiro para aparecer. É isso aí. Agora eu já chorei tudo por ela e pintei um quadro. Está tudo bem, gente. Eu pintei um quadro dessa lembrança e deixei guardado. Pelo menos ela saiu de mim. Devo ficar feliz.
Será que o risco de cair é uma sensação plantada em nós? Teorias e mais teorias falam sobre isso. Implantes culturais, familiares, psicológicos, religiosos. Tudo isso é muito antropológico e muita gente viveu a vida inteira para provar que sim, é isso e aquilo e aquilo outro. Eu acredito. Acredito em tudo isso. Hoje em dia eu acredito mais que nunca em implantes. Por isso mesmo deixei várias práticas para trás. Elas simplesmente não explicam mais o risco. E o que é de verdade me parece uma grande incógnita agora. Chega um ponto da vida em que você não quer mais só boas teorias explicativas. Você quer ressurgir, renascer, respirar. E aí aquilo que repetiu tantas vezes vai para uma peneira. Eu pelo menos, hoje, tenho que me perguntar: isso faz com que me sinta melhor? Uma curiosidade é que na verdade pouca coisa faz com que me sinta melhor. É sinalo de que tenho sim, que ser bem seletiva no que acredito.
E, ainda por cima, adoro ficar no platô da montanha admirando a paisagem longínqua do sucesso e lamentando aquele abismão ali no meio.
Como agora mesmo. No computador teclando rápido para escrever um livro. E o abismo ali. Editoras, mercado, dinheiro, divulgação, editores, portas na cara, você é nada, impostora. Sabe quantos livros eu tenho publicados? Um. Quanto dinheiro isso me deu?Duzentos reais, a uns sete anos atrás.
Mas uma outra taróloga havia me dito que não teria dinheiro na história. Foi tudo anunciado pelas cartas. Sem surpresas.
Puxa, isso cansa. Lembrar essas coisas cansa. E quando começo a cansar é que viro uma legítima frequentadora de estatísticas trágicas. Não sei quantos por cento da população ativa desiste de uma boa idéia no início. É porque cansa mesmo. Vem aquela certeza, não sei de onde, que isso não vai dar em nada. Uma trajetória tão rica em coisas largadas na beira do caminho, que essa agora também não vai levar a lugar nenhum. Olha só, o dedo, que antes estava quase em êxtase escrevendo no computador com volúpia, começa a escrever devagar.
Estão sentindo o freio? Ele está vindo.
“Pare, pare. Quanta bobagem, começar mais um livro que vai ficar no HD de um computador sem utilidade nenhuma.”
Péra aí. Sem utilidade não.
Vai ser uma catarse.
Ahá.
“Idéias boas para catarse. Isso é coisa de fracassado” (Apresento o perseguidor mental de Elizabete).
Acho é que vou poupá-los de uma sequência de pensamentos em cascata que começam a surgir na minha cabeça. Marteladas e marteladas na minha auto estima.
Blá blá blá.
(se quiser continuar seguindo as histórias de Elizabete, aguarde o aviso)